Cancioneiro de Resende (A Madeira no)
Teofilo Braga, no seu livro Poetas Palacianos, em que largamente se ocupa do “Cancioneiro de Resende“, insere um capítulo a que deu o título de “El-Rei D. Duarte e o cyclo poético da Madeira“, onde pela primeira vez se expõe a ideia da existencia dum grupo de cultores da poesia, naturais da Madeira ou nela residentes, que tiveram larga representação no mesmo Cancioneiro e que pelo seu incontestável mérito literário poderiam constituir um ciclo ou escola à parte, no meio da numerosa falange de poetas que figuram naquela célebre colecção. Parece-nos que o ilustre escritor levou muito longe o conceito abonatorio, que benevolamente formou dêsse Ciclo ou dessa Escola madeirense. O dr. Alvaro Rodrigues de Azevedo, abalizado comentador das Saudades da Terra e também distinto critico literário, discorda da opinião de Teofilo Braga, fazendo as seguintes sensatas considerações: “Estamos em que o grupo dos poetas madeirenses deste periodo não constitue cyclo distinto e apenas ramo do cyclo continental, porque não tem tipo proprio; a indole e a forma das produções desses poetas são comuns com as dos demais poetas palacianos da mesma escola, colligidas no Cancioneiro Geral. Mas, nem por isso aquele muito notavel grupo deixa de ser titulo bastante a que a ilha da Madeira tenha quinhão honroso na historia ante-classica da literatura nacional, quinhão que T. Braga lhe revindicou“. Vamos nós agora procurar fazer um breve inventário ou resenha dessas composições poeticas insertas no “Cancioneiro Geral de Garcia de Resende“ percorrendo as páginas dos seus cinco volumes (ed. de 1910-1918) e apresentando ao mesmo tempo umas rápidas notas de caracter pessoal, que melhor possam identificar os nomes dos autores a que elas dizem respeito. Abre o primeiro volume do Cancioneiro com a célebre contenda poetica acêrca de “O Cuydar e o Sospirar“, a que em muitas obras se fazem frequentes referencias e em que tomaram parte diversos poetas palacianos, ocupando todo êste elegante debate mais de cem páginas da edição que estamos compulsando. O Ciclo da Madeira tem nele condigna representação com as composições do trovador João Gomes, de quem, em outro lugar, já deixamos dito: “Não está averiguado se veio para este arquipelago como um dos seus antigos povoadores ou se teria nascido na Madeira. Em diversos escritos é citado com o nome de João Gomes da Ilha e também com o de João Gomes o Trovador, pois que cultivou com distinção a poesia, encontrando-se treze composições suas no “Cancioneiro de Garcia de Resende“. Casou no Funchal com D. Guiomar Ferreira, filha de Gonçalo Aires Ferreira, o conhecido companheiro de João Gonçalves Zargo. Teve terras de sesmaria nas margens da ribeira, que tomou e ainda conserva o nome de João Gomes. Foi pagem do infante D. Henrique e faleceu pelo ano de 1495. Além dos versos acima citados e incluídos na disputa de “O Cuydar e o Sospirar“, encontram-se no Cancioneiro mais vinte composições poeticas, todas subordinadas ao titulo *De Joham Gomez da Ylha+, embora com algumas variantes na maneira de ortografar essas epigrafes. Como já notou o dr. Rodrigues de Azevedo foi João Gomes o mais fecundo dos poetas do Ciclo da Madeira; a que podemos acrescentar que também foi de todos o mais distinto. A este se segue imediatamente no Cancioneiro o nome de Tristão Vaz Teixeira, que ali se encontra sob a rubrica De Tristam teyxeyra capitãao de Machyco. Foi o segundo capitão donatario de Machico e filho do primeiro donatario Tristão Vaz, tendo nascido no continente português e morrido na capital da sua donataria, onde foi sepultado na capela de S. João, por ele fundada e erecta na igreja paroquial da vila de Machico. Tornou-se mais conhecido pelo nome de Tristão das Damas porque, diz o doutor Gaspar Frutuoso, foi muito cortesão, grande dizedor e fazia muitos motes ás damas, e era muito eloquente no falar. Figura como uma das mais importantes personagens da interessante novela madeirense A Filha de Tristão das Damas, da autoria do ilustre escritor e académico sr. J. Reis Gomes, achando-se ali reproduzida uma
das suas poesias que vem inserta no segundo volume do Cancioneiro.
Filho de João Gonçalves Zargo e segundo capitão-donatario do Funchal, figura na colecção de Garcia de Resende com três composições poeticas sob a rubrica de Joham Gonçalves capytão da ilha. Segundo se depreende da informação dada por Frutuoso deve ter nascido por 1414 e faleceu no Funchal a 25 de Março de 1501, sendo sepultado na igreja do convento de Santa Clara, junta dos degraus do altar-mor, onde há poucos anos se descobriu a lápide que cobre a sua sepultura. Deu grande desenvolvimento aos trabalnos da colonização iniciada por seu pai, tendo consideravelmente contribuído para o progresso e engrandecimento da antiga vila do Funchal. Nas nossas porfiadas lutas em Marrocos contra os mouros, distinguiu-se notavelmente pela sua destemida coragem e ainda pelos socorros materiais com que algumas vezes concorreu para acudir ao iminente perigo em que se encontravam os dominios portugueses daquela região. Foi o fundador do convento de Santa Clara, ao qual doou a grande propriedade do Curral das Freiras no ano de 1492. Também figura como personagem notavel na novela A Filha de Tristão das Damas acima citada.
Outro poeta palaciano do “Ciclo da Madeira“, que tem algumas composições no Cancioneiro. Nasceu no Funchal e era filho do segundo capitão-donatario João Gonçalves da Camara. As antigas cronicas madeirenses falam com grande encarecimento dos serviços que prestou no norte de Africa e da sua grande bravura como militar, referindo-se especialmente a um encontro “em que á testa de cento e cincoenta cavaleiros quasi todos da ilha praticou prodigios de valor.
Com uma pequena produção de oito versos, deparamos com o nome de Pero Correia ou antes Pedro Correia, conforme se lê em vários escritos que se ocupam das cousas da Madeira. Foi segundo capitão-donatário do Pôrto Santo, embora Gaspar Frutuoso não o considere como tal. Por morte de seu sogro Bartolomeu Perestrelo, primeiro donatário daquela ilha, comprou Pedro Correia a capitania do Pôrto Santo, que administrou durante alguns anos. Atingindo o filho e herdeiro de Bartolomeu Perestrelo a maioridade impugnou a posse da donataria de que fora injustamente esbulhado, conseguindo rehavê-la, por mandado do monarca e entrar na posse dela. Pedro Correia foi capitão-donatário da ilha Graciosa, que teve de abandonar quando fixou residencia no Pôrto Santo.
Incluem também no Ciclo da Madeira os poetas do Cancioneiro Duarte de Brito, Rui de Sousa e Rui Gomes da Gran, que o historiador das ilhas (Saud., 156) nos informa serem casados com netas de João Gonçalves Zargo, e ainda João de Abreu, casado com uma neta de Tristão Vaz, primeiro donatário de Machico, encontrando-se algumas composições desses poetas no primeiro e quarto volume do Cancioneiro.
Parece dirigirem-se ainda a um poeta da Madeira as seguintes palavras de Teofilo Braga: “Em uns versos de Francisco da Silveira, escritos em 1498, apodando um fidalgo da ilha da Madeira, que andava em Castela, refere-se ao Conde de Tendilha, como poeta, pai do chefe da escola de Sevilha Diogo Hurtado de Mendonça: “Diga o Conde de Tendilha e a senhora Bobadilha se da ilha do Funchal foi homem tam por seu mal a Castilha“ Esta composição é extensa e tem por título (Canc., IV-230): “Do coudel moor Francisco da Sylveira estando em Portugal a estas ceroylas de Manuel de Noronha, as quaes mandou a Castela“. Dela não se pode deduzir com clareza o comentário feito por T. Braga, que certamente teria tido outro elemento de informação, além do que lhe foi fornecido pelo contexto da referida composição poetica.