Tratamento de distinção
Tendo-se generalizado extraordinariamente certos tratamentos de distinção usados na sociedade, mal se pode formar uma ideia de quanto se escrupulizava, em antigos tempos, o emprego dos mesmos tratamentos. Era quase uma ciência conhecer a maneira como nos devíamos dirigir às pessoas, tendo o emprego dos tratamentos variado bastante com o decorrer dos tempos, em virtude de circunstâncias que impossível se torna determinar.
A Madeira seguiu os exemplos da metrópole no emprego das distinções concedidas às pessoas, e, por isso, desde os fins do século XVI até o princípios do século XVIII se dava o tratamento de senhoria ao governador e capitão-general, e ao bispo da diocese, tendo todos os demais cidadãos o tratamento de mercê, com o qual provavelmente se davam por muito honrados.
Os bispos tiveram por muito tempo o tratamento de mercê, que nos primeiros séculos da monarquia só era concedido aos reis, mas durante o domínio castelhano já se lhes dava na Madeira o tratamento de senhoria ilustríssima, como se vê de diplomas registados em livros dessa época.
Foi a lei de 31 de Janeiro de 1739, registada a folhas 50 do Livro 9.° do Arquivo da Câmara Municipal do Funchal, que determinou que os grandes eclesiásticos tivessem o tratamento de excelência, o qual deveria ser concedido também aos governadores com a patente de capitães-generais, mas somente enquanto se achassem nos distritos dos seus governos, não tendo nenhuma outra autoridade local sido contemplada no mesmo diploma com altos tratamentos de distinção, o que equivale a dizer que o corregedor, o juiz de fora, o juiz da alfândega e outros funcionários superiores da Madeira continuaram, como até ali, a receber apenas o tratamento de mercê.
Ao Conde de Castelo-Melhor e Marquês de Valença, este alcaide-mor de Machico e aquele do Funchal, dava-se nos fins do século XVIII o tratamento de excelência, por serem ambos grandes, do reino, ao passo que aos viscondes, barões e moços fidalgos só pertencia o tratamento de senhoria. Posteriormente, dava-se ainda este último tratamento aos cónegos da Sé do Funchal, em virtude do alvará-régio de 15 de Novembro de 1817, e aos coronéis comandantes de tropas, tendo o tratamento de mercê todos os demais oficiais à excepção de marechais, tenente-generais e equiparados, a quem competia o tratamento de excelência.
Os governadores e capitães-generais D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho e D. José Manuel da Câmara costumavam dar à Câmara Municipal do Funchal o tratamento de senhoria, o que era contra a lei e praxes estabelecidas, tendo esta última autoridade sido repreendida por tal motivo pelo governo da metrópole, observando-se-lhe que àquela corporação só competia o tratamento de mercê. Só de 1834 em diante é que se estabeleceu o uso, ainda assim não autorizado por lei, do chefe do distrito dar ás Câmara Municipais e a todas as autoridades e directores de repartição o tratamento de senhoria.
Segundo a legislação que vigorou até a implantação da República, era aos governadores e capitães-generais e não aos governadores-civis, que pertencia o tratamento de excelência; no entanto todos consideravam um dever dar esse tratamento ao representante do poder central neste distrito, e só o governo lho negava algumas vezes nos primeiros tempos constitucionais. Um juiz do Tribunal Administrativo deu em certa ocasião ao governador... civil do Funchal o tratamento de senhoria assim ler sido tratada por esta autoridade, mas o governo, consultado sobre o assunto, não aprovou o procedimento daquele magistrado, embora reconhecesse que, segundo a lei, não tinha o governador civil o tratamento de excelência.
Era uso dar ao antigo comandante da 9.ª divisão militar, com sede no Funchal, o tratamento de excelência, ás vezes porém ilegalmente, visto esse cargo nem sempre ter sido desempenhado por oficiais-generais. Do comandante da Divisão, passou aquele tratamento às autoridades superiores militares que depois houve na ilha.
A Câmara Municipal do Funchal só principiou a receber do governador civil o tratamento de excelência depois que teve por presidente o Conde de Carvalhal, grande do reino, ao passo que os Administradores do Concelho foram sempre tratados por senhoria, pelo chefe superior do distrito, enquanto existiu no país o governo monárquico. Foi por 1872 que a Câmara Municipal do Funchal passou a dar definitivamente aos Juízes de Direito o tratamento de excelência, o qual estendeu depois ao Administrador do Concelho, e mais tarde a quase toda a gente.
Para se ajuizar da importância que no século XVIII e ainda no princípio do século XIX tinham no país certos tratamentos de distinção, bastará dizer-se que os duques de Aveiro tiveram de empregar as maiores diligências i para obter o tratamento de excelência, e que só no ano de 1811 é que aos vice-reitores da Universidade de Coimbra foi concedido o tratamento de senhoria, isto em recompensa de serviços prestados pela mesma Universidade j em defesa da pátria, durante as invasões francesas!
Nos princípios do segundo quartel do século XIV, quando à grande maioria dos homens se dava somente o tratamento de mercê, ou, quando muito, o de senhoria, já as senhoras, a exemplo do que se praticava em Portugal, recebiam quase sempre na Madeira o tratamento de excelência. Não eram, porém, todas as damas, como hoje acontece, que tinham direito a essa deferência da parte dos homens, mas somente aquelas que pelo seu nascimento ou pela posição social de seus maridos constituíam uma classe digna duma particular consideração. As damas a quem ninguém ousava negar outrora o título de dona, eram aquelas a quem se dava o tratamento de excelência, o qual todavia só pertencia de direito à esposa do capitão-general e a poucas senhoras mais.
O tratamento de senhoria só é usado hoje na Madeira pela classe comercial e o de mercê pela gente dos campos. Vossemecê e amecê, abreviaturas de vossa mercê, são modos de tratamento muito usado nas classes baixas da sociedade e bem assim entre superiores e inferiores iletrados, ao passo que o de você só está em uso entre indivíduos que têm relação de amizade, sendo fora disso considerado tratamento ofensivo.