Colera-Morbus em 1856 e 1910. (A)
Está ainda presente na memoria de muitos e bem viva na tradição local, o que foi essa horrorosa calamidade que assolou este arquipelago nos meses de Julho a Outubro de 1856 e que roubou a vida a cêrca de dez mil dos seus habitantes.
A colera-morbus grassava intensamente em Lisboa e, no bairro de Belém, a epidemia tinha-se manifestado com extraordinaria virulencia. Nesse bairro estava aquartelado o regimento de infantaria nº. 1, que o govêrno central numa criminosa imprevidencia, fizera seguir para a Madeira, onde chegou na tarde do dia 28 de Junho, desembarcando imediatamente e indo ocupar o extinto convento de S. Francisco. No dia 2 de Julho fora o regimento aquartelar-se no Colegio de S. João Evangelista e ali se procedeu á abertura dos fardos e bagagens, tendo-se então manifestado os primeiros casos de colera em algumas praças de pré do mesmo regimento. O primeiro madeirense atacado foi um maritimo por nome Manuel Rodrigues, que morava na imediação do convento de S. Francisco e que estivera em contacto com alguns soldados de infantaria n°.1.
Começou a epidemia a propagar-se com grande intensidade, principalmente no bairro de Santa Maria, estendendo-se depois a tôda a cidade, e rapidamente se difundiu pelas freguesias suburbanas e rurais. Era já um incendio que lavrava por tôda a parte. Tocou o maximo da sua violencia no dia 31 de Julho ceifando a vida, dentro da área da cidade a 162 patricios nossos no periodo de 24 horas.
Fora do Funchal manifestou-se primeiramente a epidemia na freguesia da Ponta Pargo, no dia 11 de Julho, e em Machico no dia 14, e sucessivamente nas restantes paroquias, sendo em algumas delas muito pequena a percentagem da mortalidade.
O maior movimento de doentes foi no hospital da Misericordia, sendo em alguns dias impossivel a admissão de colericos, tal era o numero avultado de atacados que enchia enfermarias e todas as dependencias em que havia espaço para lançar-se uma enxerga. O hospital militar e o edificio do Asilo de Mendicidade foram adaptados para a hospitalização de colericos, e nas freguesias de S. Antonio, Ribeira Brava, Machico, Ponta do Sol e outras montaram-se hospitais provisorios.
Se a epidemia, diz um relatorio oficial se mostrara aterradora no concelho do Funchal pelos estragos que causava, nos concelhos rurais redobraram os seus horrores, pois além do crescido numero de vitimas, a população lutava também com a fome e não tinha facultativos nem remedios para acudir aos enfermos. O estado de desanimo, de atribulação e de miseria a que chegaram estes concelhos era na verdade indescritivel. Muitos doentes morriam por falta absoluta de soccorros medicos, outros finavam-se á mingua de alimentos. A maior parte dos hospitais provisorios estavam em pessimas condições, e todos careciam dos mais triviais socorros. Os doentes jaziam deitados no chão, sôbre más enxergas, notando-se frequentemente ali tanto a promiscuidade de sexos como a de vivos mortos. Em vista disto, resolveram as autoridades que os subdelegados tecnicos Branco e Brand percorressem a ilha, levando medicamentos e outros socorros para acudir aos colericos. Não era possivel fazer mais do que se fêz. Segundo os dados oficiais, a colera vitimou 7041 individuos, mas tem-se sempre afirmado que o numero dos que sucumbiram á epidemia foi aproximadamente de dez mil. No concelho do Funchal morreram 2014 pessoas, sendo 311 na freguesia da Sé, 519 em S. Pedro, 376 em Santa Maria Maior, 69 em S. Roque, 129 em S. Martinho, 315 em Santa Luzia, 214 em S. Antonio, 83 no Monte e 88 em S. Gonçalo.
As freguesias rurais emn que se registou maior mortalidade foram as da Ponta do Pargo com 328 obitos, Machico 319, Camara de Lôbos 393, Campanario 206, Ponta do Sol 281, Tabua 161, Serra d’Agua 143, Ponta Delgada 409, S. Vicente 307, Estreito de Camara de Lôbos 139 etc.. No hospital da Misericordia faleceram 619 individuos, no de S. Antonio 119 e no do Asilo 63.
No artigo consagrado ao governador civil Antonio Rogerio Gromicho Couceiro poremos em relêvo a acção verdadeiramente providencial que entre nós exerceu esta autoridade e o grande reconhecimento que a Madeira lhe deve pelos assinalados serviços que prestou a todo o arquipelago. Também nos queremos referir aqui ao dr. Antonio da Luz Pita, que era o delegado do conselho de saúde do reino e que achando-se em Lisboa, na qualidade de deputado por esta ilha, imediatamente partiu para o Funchal, no vapor de guerra Mindelo, sendo o portador dos socorros que o govêrno central enviara sem demora, e acompanhando alguns medicos que do continente vieram prestar serviços clinicos nesta ilha. Estes primeiros socorros consistiram numa grande copia de medicamentos, muitas roupas, leitos e enxergas etc., e um credito de seis contos de réis, socorros de que depois se fizeram novas e abundantes remessas. A classe medica assinalou-se pela sua extraordinaria dedicação, sendo vitimas três medicos madeirenses e um inglês, o dr. Ross.
Longe iriamos, se quisessemos descer a outros detalhes e notas mais pormenorizadas relativamente á terrivel epidemia que em 1856 assolou este arquipelago.
Quem quiser ter conhecimento mais desenvolvido do assunto, pode consultar a segunda parte do relatorio oficial publicado em 1866 e os artigos insertos no Heraldo da Madeira no mes de Outubro de 1908.
A colera em 1910. A epidemia colerica que em Outubro de 1910 se manifestou no Funchal nem remotamente atingiu as proporções da colera-morbus de 1856. Embora a sua duração fosse sensivelmente a mesma, foi no entretanto muito desigual o numero de atacados e dos que a ela sucumbiram. Segundo os dados oficiais, a epidemia de 1856 vitimou 7041 individuos e a de 1910 a 1911 apenas 556. Seria porventura menos virulenta a natureza da doença, mas deve principalmente atribuir-se a desproporção da mortalidade aos meios de combate empregados para debelar a epidemia. Os tempos são muito outros, os recursos de que dispõe a ciencia nas duas epocas são inteiramente diferentes, não admitindo o mais ligeiro confronto entre si, existe na actualidade uma mais exacta compreensão dos deveres a cumprir tanto por parte dos elementos oficiais como das populações rurais, a higiene já não é uma palavra vã, sobretudo nos centros populosos, e vai-se observando com algum rigor, principalmente por ocasião das doenças epidemicas, tudo isso contribuiu poderosamente para que a colera de 1856, ainda lembrada com tanto horror, e a de 1910, fôssem tão desproporcionadas no seu contagio, no seu alastramento e nos estragos causados. E tivemos a boa fortuna de encontrar-se á testa dos diversos serviços de ataque á epidemia um medico notabilissimo que, como homem de ciencia e bacteriologista muito distinto, espirito essencialmente organizador, de rara e prudente energia, de uma abnegação e zêlo sem limites e também da mais comprovada autoridade de caracter, prestou a esta terra, em tão calamitosa epoca e em tão dificeis e desoladoras circunstancias, serviços que não podem esquecer nunca, ficando o seu nome prestigioso indissoluvelmente ligado á historia do nosso arquipelago e colocado a par dos que mais têm bem-merecido do reconhecimento e gratidão dos seus habitantes.
Os primeiros casos que despertaram a atenção dos medicos foram os de duas irmãs moradoras na proximidade do Paiol, sendo uma atacada a 20 de Outubro de 1910 e a outra a 23 do mesmo mês, e falecendo esta a 4 de Novembro seguinte. Tomaram-se logo as devidas precauções, fazendo-se o isolamento do domicilio, desinfecções, a revisão medica dos contractos, etc.. Apareceram em seguida mais dois casos na rua da Imperatriz D. Amelia, e seguidamente se foram registando outros em diversos pontos da cidade. A breve trecho a doença surgiu em Camara de Lôbos, Machico e outras localidades. A população começava a alarmar-se e a autoridade superior do distrito, profundamente impressionada com a difusão da doença, reuniu a Junta Consultiva de Higiene, no dia 17 de Novembro, tomando-se então mais energicas e proficuas providencias, e ao mesmo tempo insistia junto do govêrno central pela adopção de medidas extraordinarias e a remessa de recursos indispensaveis com que na Madeira se não podia contar.
Com poderes extraordinarios, mandou o govêrno central á Madeira o dr. José Alfredo Mendes de Magalhãis, na qualidade de alto comissario da republica, que prestou excelentes serviços e que durante a sua permanencia entre nós mostrou sempre os melhores desejos de cooperar eficazmente na extinção da epidemia. Como merecida homenagem a esses serviços, realizou-se uma sessão solene na Camara Municipal deste concelho, em sua honra, sendo-lhe por essa ocasião conferida a distinção de municipe e cidadão honorario do Funchal, e feita a inauguração do seu retrato no salão nobre dos paços do concelho. Além de creditos extraordinarios para fazer face ás grandes despesas com o combate da epidemia, enviou também o govêrno um contingente de tropas, pelo fundado receio de haver alteração da ordem publica.
A mais acertada medida porém tomada pelo govêrno da metropole, foi a da vinda do dr. Carlos França, que chegou ao Funchal no dia 22 de Novembro, e que depois de alguns dias de trabalho de laboratorio e de outros estudos indispensaveis, assumiu tôda a direcção dos serviços sanitarios e de ataque ao flagelo que ameaçava assolar tôda a ilha, revelando desde logo não só a mais segura orientação e a mais comprovada competencia, como também um acendrado zêlo e a mais fervorosa dedicação no exercicio das multiplas funções que teve de desempenhar no meio de tão trabalhosa e arriscada missão. Do continente vieram sete medicos, varios enfermeiros e um analista do Instituto Bacteriologico Camara Pestana, que, juntamente com os medicos da Madeira, prestaram bons serviços e deram provas de verdadeira abnegação no desempenho dos serviços que lhes foram distribuidos.
Funcionaram hospitais de colericos no Lazareto de Gonçalo Aires e nas freguesias de Santo Antonio, Camara de Lôbos, Ribeira Brava, Santa Cruz e Machico.
A epidemia grassou nos concelhos do Funchal, Santa Cruz, Machico, Camara de Lôbos, Ponta do Sol e Pôrto Santo, não atacando as freguesias da Madalena, Serra de Agua, Curral das Freiras, Santo da Serra e todo o concelho da Calheta, com excepção da Fajã da Ovelha, onde apenas se deram dois casos. Também foram poupadas as treze freguesias de tôda a costa norte da Madeira. O numero de óbitos, por concelhos, foi de 210 no Funchal, 161 em Camara de Lôbos, 71 na Ponta do Sol, Machico 75, Santa Cruz 26 e Pôrto Santo, sendo o total de 556.
Longe iriamos se pretendessemos descer a detalhes acêrca do modo como foram montados e desempenhados os diversos serviços sanitarios, e mais longe iriamos ainda se quisessemos particularizar muitos episodios e circunstancias dignos de registo especial, mas que não cabem nos limites deste artigo. Quem pretender fazê-lo, terá apenas que consultar o brilhante e desenvolvido trabalho escrito pelo dr. Carlos França, e que se intitula A Epidemia Cholerica da Madeira 1910-1911. Relatorio apresentado ao ministro do interior e ali encontrará tudo quanto posso interessar a este calamitoso periodo da historia madeirense.