Ribeira Brava (Freguesia da)
Acerca da origem do nome desta freguesia, prosápia e serviços dos seus moradores e fertilidade dos terrenos que a constituem, ouçamos, embora com as suas costumadas hipérboles, o famigerado historiador das ilhas: «...e pozeram muitos dias no caminho até chegarem dahi a três léguas a uma furiosa ribeira, na praya da qual estava aguardando o capitam, que em terra desembarcara, e tinha ahi traçado huma povoação, a que deu nome Ribeira Brava, pela que corria neste logar, que aqui depois se fundou tão fresca e nobre das melhores da ilha, que além de ter muitos fructos e mantimentos em abundancia, he e foi sempre tão generosa com os seus moradores que nella vivem, que, quando convinha aos capitães do Funchal que depois foram socorrer os logares de Africa com gente, deste só logar tiravam tão nobres cavalleiros e gente lustrosa que á sua custa hiam servir a El-Rey, e tinham tanto nome, como ao diante se verá no discurso desta historia; além de outra nobre gente, criados dos capitães, que sempre daqui os tiveram mui cavalleiros e de nobre geração. Não he este logar villa pelo deixar de ser á falta de muitos visinhos e bom assento, e ser o somenos da ilha, antes he o mais bem assentado, e magnífico de todos; senão por ser termo da Cidade do Funchal, e huma fresca quinta, donde os moradores da cidade achão e lhes vai o melhor trigo, fructas, caças, carnes, e em mais abundância que em toda a ilha; e pode-se com razão chamar celeiro do Funchal, como a Ilha de Cecilia se chama de Itália». Em outro lugar, diz ainda o autor das Saudades: – «Ao Occidente huma legoa do Campanário, está a Ribeira Brava, que por extremo tem este nome: he huma aldeya que terá como trezentos fogos, com huma egreja de S. Bento, e bom porto de calháo miudo, que pelo chão da ribeira acima tem as casas, e muitas cannas de assucar, e dous engenhos, e pomares muito ricos de muitos peros e peras, nozes e muita castanha, com que he a mais fresca aldeya que ha na ilha; pelo que, e pelo merecer, por ter bom porto, e ser muito viçosa, já muitas vezes tentaram os moradores de a fazerem villa: tem também muitas vinhas, ainda que o vinho não he tão bom como he o do Funchal. A ribeira he tão furiosa quando enche, que algumas vezes leva muitas casas, e faz muito damno, por vir de grandes montes e altas serras; e por ser desta maneira, lhe vieram a chamar brava». É uma das freguesias da Madeira de mais remota criação, que o anotador de Frutuoso fixa no ano de 1440. Não seria talvez então uma paróquia no sentido rigoroso que esta expressão querer designar, mas constituía já um núcleo importante de população com a sua pequena igreja e capelão privativo, que gozaria, por certo, dalguns dos privilégios e direitos conferidos aos vigários in solidum. Assim aconteceu com outras freguesias nos tempos primitivos da colonização. No Índice Geral da antiga Provedoria da Real Fazenda, encontramos citados os seguintes diplomas acerca dos párocos desta freguesia: alvará régio de 28 de Maio de 1549, acrescentando um moio de trigo ao seu vencimento primitivo de 8000 réis, e um marco de prata; alvará régio de 28 de Julho de 1556, fixando esse vencimento em 8.000 réis em dinheiro, um marco de prata, dois moios de trigo e uma pipa de vinho; alvará régio de 13 de Março de 1572, elevando o mesmo ordenado a 34 000 réis; alvará régio de 8 de Maio de 1591 arbitrando-o em 27.000 réis em dinheiro, dois moios de trigo e uma pipa de vinho; e alvará régio de 22 de Outubro de 1599 acrescentando mais 3.000 réis aquele ordenado, sendo todas estas verbas, anuais. O curato desta freguesia foi criado pelo alvará régio de 30 de Agosto de 1594, tendo o alvará de 2 de Janeiro de 1606 fixado o seu ordenado anual em 20.000 réis em dinheiro. Pela sua importância e aumento da população foi esta freguesia sede duma colegiada (vol. 1, pag. 283), que teve sua criação pelos anos de 1540, com quatro beneficiados e o ordenado de 8.000 réis anuais a cada um. Os alvarás régios de 16 de Maio de 1549, 18 de Junho de 1572, 8 de Maio de 159l e 13 de Março de 1745 acrescentaram sucessivamente esse vencimento, que o ultimo destes diplomas fixou em 6 000 réis em dinheiro, dois moios de trigo e uma pipa de vinho anuais. O numero de beneficiados foi reduzido a três pelo alvará de 5 de Setembro de 1577.
Além destes serventuarios eclesiásticos, tinha a colegiada o cargo de tesoureiro, que percebia pelo alvará régio de 10 de Fevereiro de 1666 o ordenado anual de 10.000 réis em dinheiro, quarenta alqueires de trigo e um quarto de vinho, com obrigação «de dar cera, vinho e hóstias para a sacristia». Teve mais ainda os cargos de pregador, organista e sacristão.
Ignoramos a data da fundação da antiga capela de São Bento, que foi a sede da paróquia e da colegiada, devendo a sua existência remontar ao segundo quartel do século XV. Esta capela sofreu varias alterações e reparos até que se construiu a actual igreja paroquial, que é incontestavelmente um dos mais antigos templos rurais desta diocese. Tem passado por diversos acrescentamentos e modificações, mas a sua primitiva edificação não deve ser posterior à segunda metade do século XVI.
Nesta freguesia existiu um convento de frades franciscanos, chamado de Nossa Senhora da Porciúncula, segundo uns, ou de S. Francisco, segundo outros, de que já demos breve noticia (volume I, página 308).
Existiram nesta paróquia as capelas de Nossa Senhora da Apresentação, Nossa Senhora da Boa Morte, Santo António e Almas. Encontra-se em ruínas a capela de S. José e acham-se ainda destinadas ao culto as de Nossa Senhora da Conceição e de São João. De todas damos resumida noticia em outro lugar desta obra.
Foram naturais desta freguesia o celebre gramático e humanista padre Manuel Alvares (volume I, página 59), José Anselmo Correia Henriques (volume I, página 317), José Ferreira Pestana (volume II, página 23), Belchior de Teive e visconde da Ribeira Brava. Também nasceram na Ribeira Brava, diz Gaspar Frutuoso, «os Coelhos, conigos da See do Funchal, estremados homens de ricas vozes. Hum delles chamão Gaspar Coelho; foi mestre da capela da See muitos annos; e Francisco Coelho, seu irmão mais moço, sendo conigo, foi também mestre da capela de El-Rey na Corte». Viveram nesta freguesia bastantes pessoas nobres, que aqui tiveram muitas terras de sesmaria e instituíram vários morgadios, destacando-se entre elas a família Teive (V. este nome), Henrique Bettencourt, cuja viúva D. Isabel Fernandes Tavora fundou a casa vinculada da Apresentação, Lopo Vaz de Sequeira, Antonio Vilela e ainda outros.
Entre os acontecimentos ocorridos nesta freguesia, que merecem especial menção, contam-se os morticínios que ali se deram no dia 29 de Junho de 1884 e a que já nos referimos a páginas 403 do volume II desta obra. Muito deve esta localidade ao visconde da Ribeira Brava. Foi ele que conseguiu que ela fosse elevada a sede do concelho e dum circulo escolar, e quem a dotou com importantes melhoramentos materiais, transformando o sítio do Lugar numa aprazível povoação que é digna de ser visitada. A abertura e alargamento de ruas e estradas, a construção dum pequeno teatro, a reedificação do fortim de São Bento e ainda outras obras ali realizadas, constituem os ribeirabravenses no dever de ser gratos á sua memória, fazendo-a perpetuar por um modo condigno através dos tempos vindouros. A 10 de Fevereiro de 1902 faleceu nesta freguesia o virtuoso sacerdote Francisco Manuel de Sousa, que como pároco e benemérito cidadão prestou relevantes serviços a esta localidade.
Tem a freguesia, segundo o censo de 1911, 5339 habitantes, e os seus principais sítios são: Lugar, Achada, Amoreira, Barreiros e Carreira, Caminho Chão, Cova, Cruz da Caldeira, Cruz e Pico da Banda de Além, Eira do Mourão, Espigão, Fajã dos Bichos, Fajã do Cerejo, Fajã da Ortiga, Fajã da Ribeira, Fonte Cruzada, Fonte do Pinheiro, Fontes, Lombo Cesteiro, Meia Légua, Moinhos, Pedra Mole, Pomar da Rocha, Ribeira Funda, S. João, Terça, Til e Vale.
No dia 29 de Junho de cada ano é o lugar da Ribeira Brava visitado por um avultadíssimo numero de indivíduos de todas as partes da ilha por causa do arraial que aí se realiza. A procissão, com a sua barquinha e a dança das espadas, constituía o principal atractivo das festas daquela localidade, mas há já algum tempo que se conseguiu expurgar o cortejo religioso daquela dança, que era muito do agrado dos romeiros. Desconhecemos a época em que a barquinha e a dança das espadas começaram a aparecer na procissão de S. Pedro, mas é de crer que uma e outra sejam dos tempos primitivos.
A barquinha, guarnecida de flores e tendo dentro alguns petrechos da pesca, símbolo desta indústria, aparece no cortejo, visto S. Pedro, cuja imagem também aí figura, ter sido pescador, ao passo que a dança das espadas era, ao que parece, o ultimo vestígio das muitas folias que apareciam outrora em certas procissões, e particularmente na do Corpo de Deus, (V. Procissões).
Os sete homens que figuravam na dança vestiam calções brancos e vestias vermelhas, e tinham na cabeça barretes verdes, em forma de mitra, guarnecidos de plumas e fitas longas, segurando cada um deles com uma das mãos uma espada pelos copos, e com a outra a ponta da espada empunhada pelo companheiro mais próximo. Ao som dum pandeiro, faziam eles diferentes movimentos compassados, passando de vez em quando sob as espadas.
Na barquinha, que ainda aparece na frente da procissão, vão umas crianças figurando de pescadores, bem como varias ofertas de produtos da terra, e a celebre dança das espadas, que algumas vezes tivemos ocasião de ver há mais de vinte anos, também precedia o cortejo religioso, não cessando os homens que nela tomavam parte de fazer meneios e voltejar enquanto o mesmo cortejo percorria as ruas do lugar, por entre alas compactas de pessoas vindas de todas as partes da ilha.