Napoleão
O desastre de Waterloo levara Napoleão a abdicar e a deixar a terra da França. Apesar das duvidas e hesitações que então agitavam o seu espírito, parece que tornara enfim a resolução definitiva de dirigir-se aos Estados Unidos da América. A 16 de Julho de 1815, embarcou em Rochefort, tomando voluntariamente lugar a bordo da nau da marinha britânica Bellerophon e acolhendo-se confiante e resignado à fidalga e generosa hospitalidade inglesa. Ao chegar, a 24 de Julho, ás costas da Inglaterra, reconheceu, desiludido, mas já tardiamente, o triste e cruel destino que o esperava-o exílio e a morte nos ásperos e solitários rochedos de Santa Helena.
A 7 de Agosto, passou Napoleão da Bellerophon para a nau almirante Northumberland e nesse mesmo dia tomou esta o rumo sul, acompanhada das fragatas Havannah, Ceylon e Bucephalus e dos brigues Peruviana, Zephiro, Zenobia, Ferrol, Icarus e Redpole. A esquadra ia comandada por George Cockburn e conduzia o regimento n.° 53 de infantaria inglesa, que ficaria de guarnição em Santa Helena. A comitiva do imperador era composta do general Bertrand, esposa e filhos, conde de Las Casas e família, generais Montholon e Gourgaud, um capitão de marinha, dois ajudantes e alguns criados.
No dia 22 de Agosto, avistaram o arquipélago da Madeira. Ao passarem entre o Porto Santo e as Desertas, o medico da Northumberland fez notar ao conde de Las Casas os traços de semelhança que encontrava entre a ultima daquelas ilhas e as rochas nuas e escalvadas de Santa Helena. Napoleão, na tolda da nau, olhava absorto as ravinas escarpadas das Desertas, quando o conde se aproximou dele e lhe comunicou a observação do médico de bordo. É possível que pela mente do imperador tivesse passado idêntico pensamento, como também é provável que, ao ver a vegetação luxuriante da Madeira, recordasse o contraste flagrante das belezas incomparáveis desta ilha e a benignidade do seu clima com a desoladora aridez de Santa Helena e as condições climatéricos de tão inhóspitas regiões. Napoleão nada disse a Las Casas, esboçando apenas um ligeiro sorriso e encolhendo desdenhosamente os ombros.
Pela noite de 22 de Agosto, surgiu a esquadra em frente do Funchal, mas parece que só fundeou no dia imediato. Todos os navios deram fundo na nossa baía, com excepção da nau almirante Northumberland, que singrava ao largo e a não grande distancia do porto. O navio que conduzia o imperador não devia tocar em porto algum durante a sua derrota, nem permitir a seu bordo a entrada de qualquer pessoa estranha à sua equipagem, segundo as rigorosas instruções do almirantado inglês.
O dia 23 de Agosto foi de um calor tão intenso como não havia memória entre os moradores desta ilha. Era o conhecido leste, que desta vez vinha acompanhado dum violento temporal. O povo na sua supersticiosa ingenuidade, atribuía o fenômeno atmosférico á passagem de Napoleão. O Atila, que assolara a Europa á frente dos seus invencíveis exércitos, apesar de prisioneiro e despojado de todo o seu poderio e grandeza, fizera ainda desencadear a rija ventania, que entre nós causara tantos prejuízos á agricultura e danificara muitos edifícios e casas de habitação!
O mar agitara-se e foi difícil a comunicação com os navios da esquadra. Diz uma testemunha presencial que o vento era forte, a vaga muito grossa e que por isso o imperador passara bastante incomodado. Conseguiram no entretanto abastecer-se de mantimentos e refrescos, e entre as provisões recebidas contavam-se «laranjas não maduras, maus pêssegos, peras sem gosto e uvas excelentes.»
Afirma-se que o cônsul inglês na Madeira, Henrique Veitch, soubera previamente da passagem de Napoleão pela Madeira e logo tomara a resolução de empregar todas as diligências para conseguir vê-lo e falar-lhe. Apesar do estado do mar e da distancia a que a Northumberland se achava da terra, conseguiu abordar o navio e falar ao almirante Sir George Cockburn, de quem era amigo pessoal e a quem expôs o grande desejo que nutria de saudar o vencedor de Austerlitz e de Marengo. Pretendeu o almirante dissuadir Veitch de qualquer tentativa nesse sentido, com o pretexto de que Napoleão se tornara em extremo irascível e até intratável, ainda mesmo para com as pessoas da sua própria comitiva. Quis a boa fortuna do cônsul inglês que naquele momento aparecesse um dos ajudantes de Bonaparte, a quem Veitch foi apresentado e a quem logo disse que desejava ardentemente dirigir as suas mais respeitosas saudações a Sua Majestade Imperial. Era a primeira vez que a bordo da Northumberland se proferia o tratamento de majestade dirigido ao imperador, pois que só era permitido trata-lo pelo simples nome de general Bonaparte. Parece que foi este o talismã que quebrou o encantamento e levou Veitch à presença de Napoleão. Recebeu afavelmente o representante da Inglaterra na Madeira e, ao oferecimento que este fizera dos seus serviços, respondeu que lhe seria muito agradável a remessa de alguns livros e de frutas desta formosa ilha. Henrique Veitch correspondeu gentilmente aos desejos de Napoleão, enviando-lhe uma magnífica oferta de frutas, doces e vinhos velhos. Tendo o imperador enviado ao cônsul alguns napoleões em ouros destinados ao pagamento do bote que conduzira os refrescos a bordo, conta a tradição que Veitch os lançara na pedra angular da igreja anglicana na rua da Bela Vista, ao abrir-se o alicerce para a construção daquele templo. Pela tarde do dia 24 de Agosto de 1815, toda a esquadra se fez de vela e tomou o rumo do seu destino, passando a 27 pelas Canárias, onde não fez porto, e a I de Setembro pelas alturas de Cabo Verde, tendo fundeado em Santa Helena a 15 do mês de Outubro seguinte. Napoleão nasceu a 15 de Agosto de 1769 e morreu na ilha do seu desterro a 4 de Maio de 1821. É sobremaneira interessante o que se encontra no «Diário» de J. R. Glover, secretario do almirante Georges Cockburn, comandante da nau Northumberland, que conduzia Napoleão para o exílio. Esse livro foi publicado em Oxford, no ano de 1931, pelo coronel H. A. Newel e dele extraiu resumidamente algumas páginas o distinto escritor madeirense padre J. Vieira Caetano, de que vamos transcrever os principais trechos referentes ao nosso assunto. «23 de AGOSTO.-O vento rodou para leste e tornou-se muito quente e desagradável. Ás duas horas foi avistada a ilha do Porto Santo e pouco depois a da Madeira. Bonaparte nesse dia não passeou antes do jantar. A' refeição, apareceu pensativo e mal disposto. Fez algumas perguntas ao almirante relativas à Madeira, quanto à sua extensão, há quanto tempo havia sido descoberta e por quem. Imediatamente depois do jantar, foi para a popa e observou a Ilha, muito particularmente quando navegavamos ao longo da sua costa, até que chegámos à baia do Funchal, quando era já escuro. Depois de jogar um pouco com Madame Montholon, retirou-se para a sua «cabine», evidentemente abatido. Estas palavras são traduzidas do Diário quasi literalmente. Mostram-nos o vencedor de Marengo e Austerlitz, melancólico e abatido. Não é para admirar, em quem se viu no zénite da glória e agora navegava para o exílio, passando dos esplendores de Paris e Versalhes para a solidão da longínqua ilhota de S. Helena. A' vista da costa madeirense, Bonaparte (o secretário de bordo não lhe dá outro tratamento) vai aprendendo a história e geografia da Madeira, que ignorava, como se vê pelas perguntas que fez ao almirante de Sua Majestade Britanica. 24 de AGOSTO - «Ficámos na baía do Funchal muito afastados do porto. A tripulação foi a terra procurar água e mantimentos e eu também fui buscar algumas frutas e vinhos. Mr. Veitch, cônsul de Sua Majestade, visitou o navio, fazendo-lhe Bonaparte muitas perguntas a respeito da Ilha, seus produtos, altura acima do nível do mar, população, etc.. Mr. Veitch jantou a bordo; depois do jantar, Bonaparte passeou com ele e com o almirante considerável tempo, conversando sobre tópicos gerais, depois do que se retirou para a cama, sem passar pela mesa do jogo». Neste segundo dia, a fragata toma provisões, o cônsul inglês Mr. Veitch vai a bordo. Napoleão conversa e continua a instruir-se sobre a Madeira, recolhendo ao leito, sem a partida de jogo. Se foi neste dia que recebeu a visita da donzela funchalense, transmitida pela tradição, que deu origem ao belo conto histórico do Sr. Major Reis Gomes, o «Anel do Imperador», não o diz o Secretário no diário de bordo, nem a visita minorou o desanimo do exilado. 25 de AGOSTO - «Tivemos a continuação do violento e muito desagradável siroco, que começou ao avistarmos a Madeira; e tal era a superstição dos habitantes que atribuíam este vento destruidor a Bonaparte que se achava no porto; estavam muito apreensivos pelas suas colheitas que, já quási maduras, seriam perdidas pela metade». Continua o secretário Mr. Glover afirmando que devido a mar mau e tempo desagradável levaram o dia, até a noite, a se fornecerem de mantimentos. Era já escuro quando se fizeram de vela para o sul. Acerca de Bonaparte, acrescenta: O calor do Leste, a desagradável natureza do vento, o balanço da nau que era muito considerável, evidentemente afectaram o General. Ao jantar, comeu muito pouco e estava desanimado. Nessa noite, jogou o Vinte e um cerca de meia hora somente e retirou para a cama». Neste dia, retirou o navio da Madeira, que Napoleão viu pela primeira e última vez. No Diário de bordo, não se faz alusão às moedas em oiro que o Imperador deixou na Madeira, em paga de frutas e de alguns livros que pediu. Mas o autor do «The English Church in Madeira», menciona-as e narra que foram depositadas pelo cônsul Veitch, nos alicerces da igreja anglicana, quando foi lançada a primeira pedra do edifício. Viu isso confirmado numa carta escrita a 5 de Janeiro de 1860 por Mrs. Minet, da família Cossart, a sua irmã Mrs. Leacock. Aquela diz que, sendo pequena, viu o cônsul Mr. Veitch, colocar algumas moedas de oiro, recebidas de Napoleão, debaixo da primeira pedra, procedendo depois à aposição do selo. Nessa tarde de 25 de Agosto, partiu o Imperador dos franceses do porto do Funchal, cujo panorama surpreendente contemplou, para o retiro de Santa Helena, onde foi meditar a nulidade das grandezas do mundo e exclamar como o eloquente orador da sua Pátria: Só Deus é grande!» Interessa bastante a este assunto, o livro «O Anel do Imperador» da autoria do ilustre escritor e académico João dos Reis Gomes. São passados 19 anos. No dia 24 de Julho de 1840, fazem fundo no nosso porto as fragatas da marinha de guerra francesa La bela Poule e Favorite, que conduziam a Santa Helena a missão que o governo de Luís Felipe encarregara de transportar oficialmente, daquela ilha até Toulon e deste porto à cidade de Paris, os restos mortais do imperador Napoleão I. Era chefe dessa missão o príncipe de Joinville (V. este nome), e dela faziam parte alguns dos antigos servidores de Napoleão, contando-se entre eles o general Bertrand, que fora companheiro de exílio do imperador e lhe assistira aos últimos momentos no retiro de Santa Helena. O distinto madeirense Monteiro Teixeira (V. este nome), que era cônsul da França no Funchal, ofereceu ao príncipe de Joinville e à sua comitiva um esplêndido baile, a que assistiram as mais qualificadas pessoas desta cidade. Foi nessa festa que uma gentil dama funchalense cantou com muita correcção e sentimento uma poesia em língua francesa, dedicada ao general Bertrand, que tivera grande voga em toda a Europa, o que profundamente sensibilizou o ilustre militar, não podendo ele ocultar a grande comoção que nesse momento vivamente o agitou. Tirando dum dedo um precioso anel, que era uma oferta de Napoleão e a mais querida relíquia que conservava do seu imperador, com ele presenteou a nossa distinta patrícia, agradecendo deste modo a carinhosa e cativante homenagem que lhe fora prestada. Aquela senhora recusou amavelmente a gentileza da oferta, principalmente por conhecer o apreço e a valia que ela teria para o coração do general Bertrand. Da comitiva do príncipe de Joinville, fazia parte Artur Bertrand, filho do general Bertrand, que nascera em Santa Helena durante o exílio e que do próprio imperador Napoleão recebera as primeiras lições da sua educação. Descreveu ele na mais eloquente e expressiva linguagem as cerimonias da exumação do cadáver
do imperador e do seu transporte para bordo dos navios franceses, que não pode ser lido sem uma respeitosa e sentida comoção. Nessa descrição, faz-se referencia á passagem da Belle Poule e da Favorite pelo porto do Funchal.
Napoleão (Príncipe Eugénio). Este príncipe, que morreu na Africa do Sul, na guerra que os ingleses sustentaram contra os zulos, esteve no Funchal a 4 de Março de 1879, havendo desembarcado do vapor inglês Danube, que se dirigia para o Cabo da Boa Esperança.
V. Eugénia (Imperatris).