História

Alçadas

Acontecimentos extraordinários, geralmente de caracter político, que se consideravam atentatórios das leis ou das instituições vigentes, determinaram a criação de tribunais especiais, que, munidos de poderes por vezes discricionários, procediam a devassas rigorosas e proferiam as suas sentenças nos próprios lugares em que se tinham dado os abusos ou os factos incriminados. Á Madeira vieram várias vezes esses improvisados mas terríveis tribunais e em algumas circunstancias apenas magistrados com poderes mais latos do que os ordinários, para sindicar e julgar acerca de crimes ou acontecimentos considerados pelo poder central como dignos de mais eficaz e exemplar castigo. Nas Saudades da Terra fazem-se menção dalgumas dessas alçadas e de vários magistrados que aqui vieram investidos de poderes extraordinários para o julgamento de certas causas e já a isso nos referimos no artigo Administração Judicial.

Parece que até o domínio filipino, não era tão latitudinaria a esfera de acção desses magistrados nem os seus poderes eram tão ilimitados, porque os tolhiam e embaraçavam as extraordinárias prerrogativas e privilégios quasi majestáticos de que gozavam os donatarios, que muitas vezes impunham despoticamente a sua interferência, cerceando com violências e vexames a jurisdição das alçadas. É certo que o poder real e outras circunstancias, como já fizemos sentir, diminuíra gradual e consideravelmente o poder dos capitais donatarios, mas os usos e costumes tradicionais, os antigos privilégios e talvez mais ainda a distancia a que ficava o governo central, favoreciam o abuso de autoridade, que de quando em quando se manifestava.

Daremos rápida noticia de algumas alçadas ou magistrados que, com iguais poderes, vieram a este arquipelago, a partir do jugo espanhol, detendo-nos particularmente nas ominosas alçadas que em 1823 e 1828 praticaram entre nós os maiores vexames e as mais inqualificaveis represálias.

O desembargador João Leitão (V. este nome), o primeiro governador da Madeira no domínio filipino, veio com poderes discricionários para julgar das pessoas que se tivessem mostrado desafectas a Filipe 21, mas ignoramos como procedeu no desempenho dessa missão e que sentenças chegou por ventura a proferir. Noutro lugar alguma cousa diremos acerca do governo filipino nesta ilha, que é um período muito interessante da nossa historia, mas é certo que escasseiam os elementos para um estudo completo sobre o assunto, a começar pelos actos da alçada de que foi encarregado o Dr. João Leitão.

Ainda por motivo de manifestações hostis ao governo dos Filipes, foi enviado ao Funchal em 1611 o desembargador Francisco Cardoso, ignorando-se o resultado da alçada de que veio investido. Sabe-se apenas que foi superiormente repreendido o governador-geral de então, por se intrometer nas atribuições da alçada.

Em 1614 e já anteriormente foram feitas serias acusações contra a má administração das cousas públicas nesta ilha, de alguns casos de morte e ainda de outros graves abusos e escândalos, o que determinou Filipe III, por carta regia de 29 de Novembro daquele ano, a nomear o Dr. Gonçalo de Sousa, desembargador da Casa da Suplicação, para vir á Madeira, com o poder de alçada, a fim de julgar e sentenciar acerca daquelas acusações e castigar os criminosos. Baldado foi o trabalho da devassa, porque os atingidos por ela fugiram e homiziaram-se, subtraindo-se á acção da justiça.

Parece que estes crimes eram da maior gravidade, porque tendo ficado impunes, veio uma nova alçada a esta ilha, passados 13 anos, para dar cumprimento ás sentenças preferidas pelo desembargador Gonçalo de Sousa. Desta alçada foi encarregado, por carta régia de 13 de Outubro de 1627, o Dr. Estevão Coelho de Meireles, que também veio sindicar de outros crimes praticados posteriormente ao ano de 1614. Tinha este magistrado poderes muito latos, devendo apenas as sentenças de morte ser homologadas pela Casa da Suplicação. No processo da devassa teve como ajudante o juiz dos resíduos deste arquipélago. Desconhecemos a natureza das sentenças proferidas e se chegaram a ser executadas. Morreu assassinado nesta ilha, pouco depois da libertação de Portugal do jugo castelhano, o corregedor da Comarca Gaspar Mousinho, sendo para nós desconhecidas quaisquer circunstancias pormenorizadas deste triste acontecimento. Por tal motivo veio em devassa á Madeira no ano de 1644 o desembargador Jorge da Costa Osorio, que proferiu sentença, mas que desconhecemos qual fosse. A sedição popular que em 1668 depois o governador e capitão general D. Francisco de Mascarenhas, o prendeu e o sujeitou aos maiores vexames, determinou a vinda a esta ilha duma alçada investida de poderes extraordinários, presidida pelo Dr. João de Menezes Coutinho, que no ano de 1669 procedeu aos trabalhos da devassa. Para evitar escusadas repetições, remetemos o leitor para o artigo Sedição de 1668, onde este assunto vem mais largamente esplanado. Com jurisdição especial, em forma de alçada, esteve na Madeira em 1683 o desembargador Domingos de Matos Cerveira, que veio devassar acerca das graves acusações feitas ao provedor e outros oficiais de fazenda. Deram-se graves conflitos entre o prelado diocesano D. Fr. José de Sousa Castelo Branco e o governador e capitão general João da Costa e Ataíde e o provedor da Fazenda Manuel Mexia Galvão, tendo o governo central mandado sindicar do caso em 1702 pelo desembargador Diogo Sálter de Macedo, que proferiu sentença, ordenando que o provedor fosse “asperamente repreendido» em câmara, na presença dos oficiais dela, e mandado depois para fora da cidade, por tempo que não podemos precisar. Alçada de 1823. A revolução que rebentou no Porto a 24 de Agosto de 1820 arvorou o sistema de governo representativo, tendo as cortes constituintes, que funcionaram de 1821 a 1822, organizado e decretado a chamada Constituição de 1822. No arquipélago da Madeira proclamou-se o novo governo a 28 de Janeiro de 1821. Em Junho de 1823 foram dissolvidas as cortes, derrogada a Constituição e restabelecido o governo absoluto. No dia 26 de Agosto de 1823, chegou á Madeira a fragata de guerra Amazonas, conduzindo o novo governador deste arquipélago D. Manuel de Portugal e Castro, que era acompanhado pelo regimento de infantaria n.° 7, por um destacamento de artilharia e por uma alçada composta de seis magistrados, a qual vinha sindicar dos actos das pessoas que se tinham mostrado desafectas ao governo absoluto e aderido ao governo constitucional. O governador e as tropas desembarcaram no próprio dia da sua chegada, mas os juízes da alçada, receando qualquer manifestação hostil por parte da população, aguardaram para o dia imediato o seu desembarque. Sucede, porém, que, na noite daquele dia, se desencadeou uma repentina tempestade que obrigou a fragata a levantar ferro, regressando ao porto três dias depois. A alçada era composta pelo desembargador Dr. José de Melo Freire, que servia de presidente, e dos juízes Drs. José Fernandes da Silva Geraldes Quelhas, Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio e Mendonça, José Freire de Andrade, Francisco Antonio de Castro e José Peixoto Sarmento de Queiroz, que tinham como auxiliares o juiz de fora e o corregedor da comarca. Instalaram o seu tribunal nos paços do concelho e aqui permaneceram no exercício do seu rigoroso inquérito de 30 de Agosto até os primeiros dias do mês de Novembro de 1823.

Na larga devassa a que procederam, foi envolvido um numero considerável de pessoas, tendo o medo avassalado o espírito publico e receando muitos uma severa condenação. Depuseram muitas dezenas de testemunhas, formando-se um longo e volumoso processo. A sentença foi proferida a 26 de Outubro, sendo condenado 24 indivíduos, na sua quasi totalidade pertencentes ás classes mais categorizadas da sociedade madeirense. Foram aplicadas várias penas, salientando-se os castigos de degredo e de desterro para as nossas possessões ultramarinas.

Entre as pessoas sentenciadas por esta alçada, mencionaremos o ilustre autor da Zargueida, Francisco de Paula Medina e Vasconcelos condenado a oito anos de degredo para Angola, o abalizado medico Nicolau Caetano Betencourt Pita, redactor do Patriota Funchalense, o primeiro jornal que se publicou no Funchal, condenado a quatro anos de desterro para a ilha Terceira, tendo ali falecido em 1857, o distinto advogado e cónego da nossa Sé Dr. Gregorio Nazianzeno de Medina e Vasconcelos condenado a dez anos de degredo para Angola, o corregedor da comarca Dr. Francisco de Assis Saldanha condenado a prisão no castelo de São Jorge, em Lisboa, o vigário do Campanário Tomé Pestana Homem de el-rei, os capitais Joaquim M. Gonçalves, João José de Sá Betencourt e Antonio João Favila condenados a diversas penas, além de outros indivíduos.

A sentença da alçada, que é documento extenso, foi publicada num folheto e vem também inserta no Archivo de Marinha e Ultramar, vol. II, pag. 98 e seguintes.

Alçada de 1828. O governador e capitão general da Madeira José Lúcio Travassos Valdez era partidário dos princípios constitucionais e por todos os meios ao seu alcance promovia a sua implantação entre nós. No dia 22 de Junho de 1828, desprezando as ameaças do governo de D. Miguel, fez proclamar com grande solenidade oficial e diversos festejos públicos os direitos de D. Pedro IV e da sua filha D. Maria, o que em extremo irritou os partidários do governo absoluto. A atitude de Valdez determinou a vinda á Madeira duma esquadra, com o novo governador José Maria Monteiro, que atacou esta ilha e a rendeu ás forças miguelistas como em outro lugar narraremos. (V. Ocupação da Madeira pelas tropas miguelistas).

O governo central, por carta regia de 6 de Agosto de 1828, encarregou o desembargador da Casa da Suplicação Francisco Antonio Maciel Monteiro de vir a esta ilha proceder a uma rigorosa devassa acerca dos acontecimentos políticos que aqui se haviam dado e de castigar severamente os que se tinham mostrado desafectos aos princípios do governo absoluto. Foi dado como escrivão dessa devassa, não um funcionário judicial qualquer, mas o desembargador da relação do Porto Dr. Manuel Luciano Abreu de Figueiredo. Os dois desembargadores vieram na esquadra e desembarcaram no Funchal no dia 25 de Agosto.

Os trabalhos da devassa começaram a 30 de Agosto e prosseguiram durante alguns meses. A 6 de Setembro, isto é 8 dias depois da alçada iniciar a sua investigação judicial, já se encontravam presos 51 indivíduos na cadeia da cidade, 15 na fortaleza de S. Tiago, 16 na fortaleza do Pico, 4 no forte do Ilhéu, 45 a bordo da fragata Príncipe D. Pedro, 15 a bordo da corveta Princesa Real, e 21 eclesiásticos no Aljube. Foi considerável o numero de homiziados em toda a ilha, procurando alguns esconderijo em lugares distantes e com a mais absoluta falta de comodidades, até que a muitos foi possível procurar no exílio uma relativa tranquilidade aos perigos que os ameaçavam. O governador e capitão general Travassos Valdez, os oficiais vindos de Inglaterra e vários madeirenses refugiaram-se a bordo da corveta de guerra inglesa Alligator (V. este nome). A alçada pronunciou cerca de 220 indivíduos, alguns dos quais obtiveram soltura por nada se ter provado contra eles. Foram remetidos presos para Lisboa, para se lhes dar ulterior destino, 77 indivíduos dos que haviam sido pronunciados e que foram condenados a diversas penas de prisão e degredo.

Pessoas mencionadas neste artigo

Antonio João Favila
Condenado a diversas penas
D. Fr. José de Sousa Castelo Branco
Prelado diocesano
D. Manuel de Portugal e Castro
Novo governador deste arquipélago
Diogo Sálter de Macedo
Desembargador
Domingos de Matos Cerveira
Desembargador
Dr. Francisco de Assis Saldanha
Corregedor da comarca, condenado a prisão no castelo de São Jorge, em Lisboa
Dr. Gregorio Nazianzeno de Medina e Vasconcelos
Distinto advogado e cónego da nossa Sé, condenado a dez anos de degredo para Angola
Estevão Coelho de Meireles
Dr.
Francisco Antonio de Castro
Juiz
Francisco Cardoso
Desembargador enviado ao Funchal em 1611
Francisco de Paula Medina e Vasconcelos
Autor da Zargueida, condenado a oito anos de degredo para Angola
Gaspar Mousinho
Corregedor da Comarca
Gonçalo de Sousa
Desembargador
Joaquim M. Gonçalves
Capitão, condenado a diversas penas
Jorge da Costa Osorio
Desembargador
José Fernandes da Silva Geraldes Quelhas
Juiz
José Freire de Andrade
Juiz
José Peixoto Sarmento de Queiroz
Juiz
José de Melo Freire
Desembargador
João José de Sá Betencourt
Capitão, condenado a diversas penas
João Leitão
Primeiro governador da Madeira no domínio filipino
João da Costa e Ataíde
Governador e capitão general
João de Menezes Coutinho
Dr.
Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio e Mendonça
Juiz
Manuel Mexia Galvão
Provedor da Fazenda
Nicolau Caetano Betencourt Pita
Abalizado medico, redactor do Patriota Funchalense, condenado a quatro anos de desterro para a ilha Terceira, falecido em 1857
Tomé Pestana Homem de el-rei
Vigário do Campanário

Anos mencionados neste artigo

1611
Desembargador Francisco Cardoso enviado ao Funchal
1614
Nomeação do Dr. Gonçalo de Sousa, desembargador da Casa da Suplicação, para julgar e sentenciar acerca das acusações e castigar os criminosos posteriormente ao ano
1627
Carta régia de 13 de Outubro
1644
Devassa á Madeira
1668
Sedição popular
1669
Trabalhos da devassa
1683
Forma de alçada
1702
Caso
1820
Revolução
1821
Novo governo
1822
Constituição
1823
Ominosas alçadas que praticaram os maiores vexames e as mais inqualificaveis represálias dissolvidas as cortes, derrogada a Constituição e restabelecido o governo absoluto
1828
Ominosas alçadas que praticaram os maiores vexames e as mais inqualificaveis represálias
Alçada de 1828